20.1.06

Vida morta X Vida e morte

Andava com dificuldade pelo chão seco, tinha ainda meia hora de caminhada. A barriga pesava, mas não era o motivo do cansaço. A barriga de oito meses pesava uma vida inteira, pra frente, e a levava onde queria chegar.
Oito meses haviam se passado rápido. Aonde quer que Fátima fosse, as mulheres não paravam de dar palpites sobre o sexo da criança:
- É menino, essa noite eu sonhei que jogava bola ali no campinho de terra
-Não diga bobagem Lourdes, a barriga dela ta pros lados, quando é assim é menina. Tanto que to fazendo dois sapatinho cor-de-rosa pra criança.
-Fátima, minha filha, você já fez o teste de sentar na almofada?
-Fátima, você já foi ao médico?
-O médico só vem em setembro...
-Mas até lá a criança já se mostrou pra nós! Ai, mas é tanto mistério...
Menino ou menina, concluía Fátima. Pra que tanto fusuê? São apenas duas opções, ou é um ou é outro! E se ria toda...
O peso da barriga tinha forma de riso contido. Esperança, se dela Fátima já tivesse ouvido falar. Ela sentia que, sabe-se como, estava gerando uma coisa bonita... Esperar o nascimento era tudo que podia fazer. Sonhava com filho desde menina, brincando com suas bonecas de palha. Guardava-se toda pra começar a viver dali um mês. Sonhava noite e dia, dia e noite, a criança gritando pela casa, pedindo de mamar, mais grandinha correndo pelo quintal, procurando um poço ou um rio pra se refrescar... Procurando flor, pescando com os menino.
O marido chegaria como sempre com o sol se pondo, mas agora em vez de ir pro bar, ficaria em casa ajudando a cuidar do menino. Ah... Agora sim, tudo ia se ajeitar! A felicidade da espera se explodia dentro dela. Numa terra de silêncio e secura, a música tocava dançante e seu coração dançava, porque Fátima sabia: Dali um mês ia ser feliz! Sabia que a vida de fora ia continuar a ser a mesma, mas não seria mais dela. Sua casa ia ser agora, sempre molhada de choro de criança, que é choro inocente, de alegria de viver... E não o choro seco de quem engole toda vez a mesma poeira, de quem sofre sempre da mesma doença.
Fátima seguia o caminho de terra sem pensar em nada. Os olhos perdidos no depois, nos próximos passos, na próxima curva. A vida olhando da janela. O sol castigando seu último mês. A barriga fazendo uma enorme sombra no chão batido, uma sombra redondinha na qual ela mesma não podia se esconder.
Ia dando-lhe uma pressa de chegar logo, uma pressa de que os dias passassem logo e o dia chegasse enfim... Uma ansiedade que ela lembrou de ter sentido só quando o circo passara pela cidade. Fátima menina, com seus 8 anos. No dia que o circo chegou à cidade, ela passou a noite toda se retorcendo na cama. Sem conseguir pregar os olhos, via no escuro da noite tudo que queria ver quando acordasse.
O silêncio quebrado pelo grito de toda criança. Era a boa lembrança que ela tinha na vida, e agora torcia pra que o circo voltasse dali um tempo, ela ia levar seu menino e rir de novo. Finalmente avistou na curva seguinte a casa de sua sogra. O marido estaria lá. Resolveu procurá-lo porque estava sentindo-se mal desde bem cedo... Agora, virando pra trás e olhando o distante lugar de onde viera, mal entendia como conseguira chegar. Faltava pouco. Só mais um pouco. Faltava pouco. Só mais um pouco. Pouco.
Injustiça. Injustiça. Injustiça. Ajoelhou-se. Não podia dar mais um passo. Chorava mesmo sem querer. Não conseguia, a dor era muita, a dor era tanta, a dor era impossível. Injustiça, palavra que se repetia em sua cabeça e ela nem pensava. Injustiça, a vila longe mudando de lugar, o mundo todo embaçado, embaralhado, entupindo seu nariz. Arrasta-se, deixa o rastro de sangue, os joelhos sangram, a terra sangra junto, no mesmo compasso.
-Antônio! Antônio!!!
Urrava o nome do seu homem. Cheia daquela terra – que ninguém entendia bem de quem era-, cheia do sangue, cheia da dor. Cheia da espera incessante, do mundo roda viva, da vida morta.
E tudo que tem nas mãos é a mesma espera de sempre.

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