31.1.06

O estranho (Para o 15o concurso maldito!)

Mariana estava se atrasando como sempre. Por mais que iniciasse o ritual banho-maquiagem-cabelo-unha (não necessariamente nesta ordem) duas horas antes, acabava atrasada. E aquele era um dia importante. Ia a um jantar com um casal que não conhecia e com seu namorado, Denis. O cara trabalhava com Denis, e a moça... Bem, a moça era a namorada do cara.
Olhos no espelho, atentos para o lápis não borrar, e o pensamento na abstrata imagem de Caio, o tal cara. A escolha das cores, cada qual com uma intenção diferente e fugaz.
Do outro lado da cidade, Lilian aguardava Caio estirada no sofá, louca pra ficar em casa e assistir um filme. Imaginava-se tendo a obrigação de ser legal com uma garota que ela nunca viu, a mesma coisa de sempre. “-Caio e essa mania de marcar as coisas sem pedir a minha opinião!” - pensava ela.
Denis e Mariana chegaram primeiro, pediram uma cerveja e esperaram. Não tinham muito que conversar... Denis olhava o cardápio enquanto ela desenhava no suor do copo, atenta ao trajeto das bolhinhas da cerveja.
-E aí, malandro! – Foi chegando o tal Caio.
Passado o momento do “Oi, tudo bem”, todos sentados à mesa e os dois contando piadas do ambiente de trabalho.
Ao contrário do que previu, Lilian não estava sendo nem falsamente simpática. Nem Mariana achava que isso fosse falta de educação da moça. As duas desviavam o olhar, mas acabavam sempre se olhando. As duas em silêncio, um silêncio total.
Mariana sentia ligeiro incômodo. A presença de Lilian lhe era confortável. Ela que queria tanto conversar com alguém, sentia-se tão bem na ausência das palavras...
Lilian bebia a cerveja, sem ignorar, simplesmente aceitava o que lhe parecia estranho.
- E vocês duas, o que acham? – Perguntou Caio.
-Sobre o que?
-A Capitu traiu ou não traiu o cara?
“Não” e “Com certeza” foram as respostas simultâneas das duas.
-Minha Nossa! Essas mulheres têm tanta certeza do que dizem!!!
E os dois riam, já meio bêbados.
Elas não riram. Olharam-se com muito.
Levantaram e saíram juntas. Deixaram na mesa o que não lhes pertencia. Os dois estranhos, os dois alheios.

25.1.06

Acordares

Saiu de casa depressa, sem dizer pra onde ia. Saiu como em todos os dias. Outra manhã de domingo, outra insuportável manhã de domingo. A melhor parte, quando ainda não se tem a consciência irreversível do dia infindo da semana. O famigerado dia do descanso, o dia em que nos reunimos, e que deveria ter sóis instantâneos, sorrisos e harmonia familiar. O dia da semana em que fica mais clara a distância entre o que somos e o que deveríamos ser.
Saiu fugido ainda que soubesse a que horas voltaria. Saiu perdido, pra se encontrar. Avistou longe todos os amigos: Velhos amigos que conhecera ontem à noite. Velhos e íntimos, os sempre amigos de uma noite antes, quiçá da semana passada. Depois se iam, sumiam, como os desenhos das nuvens.
Já sabia. Eles iam rir, falar mal de um monte de gente, na frente das quais sorririam depois, esparramando sua carência e solidão em todos os cantos da cidade. Beberiam mais algumas, diriam coisas com as quais não concordavam, por exemplo, que adoraram filmes que, na verdade, não entenderam:
“- David Lynch é genial!” - para parecer mais interessante e quem sabe comer alguém naquela noite.
Voltou.
Voltou.
Voltou muitos domingos, sempre ao mesmo lugar. Ia dormir e todos os dias pensava em pensar, mas desistia e afastava essa idéia. Tornou-se um grande apresentador de TV, às custas de um tio rico. Ficou rico, famoso, “querido por todo o Brasil”. Comprou uma casa enorme, cheia de espelhos, vidros e ecos vazios.
Acordou.
Abriu os olhos de súbito. Olhou a janela, a fresta de luz, os cigarros, os móveis ao redor. Olhou tudo e não viu nada. Sentou-se. Náusea. Sentiu alguém chegando por trás, dar-lhe-ia um susto, um beijo e um bom dia.
Silêncio.
Acordou.
Abriu os olhos de súbito. Ficou parado uns instantes. Olhou tudo ao redor. O cigarro. Eu não fumo – pensou. Sentiu alguém vindo até ele. Pegou o cigarro.
Acordou.
Abriu os olhos lentamente. Chorou lentamente. Olhou a cabeceira da cama: Nenhum cigarro.
Quis um cigarro. Passou as mãos no rosto. Estava acordado. Arranhou o próprio rosto. Quis tirar aquela série incessante de acordares. Quis tirar tudo.
Viu o espelho.
Era tarde.

21.1.06

...Descontinuando...

Depois de muito tempo
...Tempo...
Quanto tempo se teria passado? Do que ele era feito?

Um jardim enorme cheio de flores coloridas das mais diversas formas, cores e tamanhos. Árvores e uma criança brincando e rindo. Uma fonte logo a frente, derramando água. Do outro lado, outra fonte. Desta, jorrava leite.
-Tenho de voltar tenho de voltar, não, não quero ir, não quero!
Choro angustiante de quem está mais que sozinho.
-Alguém, por favor!
Estende a mão sedenta de vida.
-Calma, preciso de calma. Mas com calma não tenho força. Quero de volta minha dor, sinal de vida! Onde está a minha dor?
Grita como se seu grito existisse pra alguém.
-Quero de volta minha dor viva!
Cheiro do café que a mamãe fazia. Cheiro das poucas vacas restantes. Paz de pesado sono infantil.
-Minhas mãos adormecem por mim, deixando a estranha sensação de morte.
Olha e vê um penhasco. Há de ter gente lá embaixo.
-Eu não vejo outra saída que não seja deitar por lá e encontrar algo que me faça sentir de novo a realidade!
Caminha acompanhada do amigo desespero. Riem juntos. Uma ansiedade triste, um nó que desce da garganta e é engolido, sem importância, sem pés numa realidade de aqui-ali, sem isso menos aquilo mais outro disso que. O ar já não importa.
-Ah, seus monstrinhos! Parem já de fazer-me rir! Não tem graça ouviram?
Dizia, retorcendo de tanto rir.
- Me dá aqui um desses balões! Eles explodem?
E ria cada vez mais e com menos pudor.
- Existe um rio agitado logo abaixo dos meus seios! Mas vocês não podem sentir! É tão engraçado sentir!
O balão explode em suas mãos.
Retorce a terra embaixo de seu corpo, seu riso tem a intensidade do silêncio.
-Parem já com isso
Quase diz, e nem ela mesmo entende.
Um silêncio tedioso toma conta de tudo, tudo toma conta do tédio silencioso.
O nó que engolira anteriormente começava a dar-lhe enjôos. Nem crianças, nem animais, nem fontes. As coisas não existiam e não tinham graça. Os enjôos, a cada instante ficavam maiores e mais atrevidos. Deixa-se cair por preguiça de desejar outra coisa.
A queda cura o nó da barriga, as flores caem por cima...Tudo se acalma.

20.1.06

Vida morta X Vida e morte

Andava com dificuldade pelo chão seco, tinha ainda meia hora de caminhada. A barriga pesava, mas não era o motivo do cansaço. A barriga de oito meses pesava uma vida inteira, pra frente, e a levava onde queria chegar.
Oito meses haviam se passado rápido. Aonde quer que Fátima fosse, as mulheres não paravam de dar palpites sobre o sexo da criança:
- É menino, essa noite eu sonhei que jogava bola ali no campinho de terra
-Não diga bobagem Lourdes, a barriga dela ta pros lados, quando é assim é menina. Tanto que to fazendo dois sapatinho cor-de-rosa pra criança.
-Fátima, minha filha, você já fez o teste de sentar na almofada?
-Fátima, você já foi ao médico?
-O médico só vem em setembro...
-Mas até lá a criança já se mostrou pra nós! Ai, mas é tanto mistério...
Menino ou menina, concluía Fátima. Pra que tanto fusuê? São apenas duas opções, ou é um ou é outro! E se ria toda...
O peso da barriga tinha forma de riso contido. Esperança, se dela Fátima já tivesse ouvido falar. Ela sentia que, sabe-se como, estava gerando uma coisa bonita... Esperar o nascimento era tudo que podia fazer. Sonhava com filho desde menina, brincando com suas bonecas de palha. Guardava-se toda pra começar a viver dali um mês. Sonhava noite e dia, dia e noite, a criança gritando pela casa, pedindo de mamar, mais grandinha correndo pelo quintal, procurando um poço ou um rio pra se refrescar... Procurando flor, pescando com os menino.
O marido chegaria como sempre com o sol se pondo, mas agora em vez de ir pro bar, ficaria em casa ajudando a cuidar do menino. Ah... Agora sim, tudo ia se ajeitar! A felicidade da espera se explodia dentro dela. Numa terra de silêncio e secura, a música tocava dançante e seu coração dançava, porque Fátima sabia: Dali um mês ia ser feliz! Sabia que a vida de fora ia continuar a ser a mesma, mas não seria mais dela. Sua casa ia ser agora, sempre molhada de choro de criança, que é choro inocente, de alegria de viver... E não o choro seco de quem engole toda vez a mesma poeira, de quem sofre sempre da mesma doença.
Fátima seguia o caminho de terra sem pensar em nada. Os olhos perdidos no depois, nos próximos passos, na próxima curva. A vida olhando da janela. O sol castigando seu último mês. A barriga fazendo uma enorme sombra no chão batido, uma sombra redondinha na qual ela mesma não podia se esconder.
Ia dando-lhe uma pressa de chegar logo, uma pressa de que os dias passassem logo e o dia chegasse enfim... Uma ansiedade que ela lembrou de ter sentido só quando o circo passara pela cidade. Fátima menina, com seus 8 anos. No dia que o circo chegou à cidade, ela passou a noite toda se retorcendo na cama. Sem conseguir pregar os olhos, via no escuro da noite tudo que queria ver quando acordasse.
O silêncio quebrado pelo grito de toda criança. Era a boa lembrança que ela tinha na vida, e agora torcia pra que o circo voltasse dali um tempo, ela ia levar seu menino e rir de novo. Finalmente avistou na curva seguinte a casa de sua sogra. O marido estaria lá. Resolveu procurá-lo porque estava sentindo-se mal desde bem cedo... Agora, virando pra trás e olhando o distante lugar de onde viera, mal entendia como conseguira chegar. Faltava pouco. Só mais um pouco. Faltava pouco. Só mais um pouco. Pouco.
Injustiça. Injustiça. Injustiça. Ajoelhou-se. Não podia dar mais um passo. Chorava mesmo sem querer. Não conseguia, a dor era muita, a dor era tanta, a dor era impossível. Injustiça, palavra que se repetia em sua cabeça e ela nem pensava. Injustiça, a vila longe mudando de lugar, o mundo todo embaçado, embaralhado, entupindo seu nariz. Arrasta-se, deixa o rastro de sangue, os joelhos sangram, a terra sangra junto, no mesmo compasso.
-Antônio! Antônio!!!
Urrava o nome do seu homem. Cheia daquela terra – que ninguém entendia bem de quem era-, cheia do sangue, cheia da dor. Cheia da espera incessante, do mundo roda viva, da vida morta.
E tudo que tem nas mãos é a mesma espera de sempre.